A velhice, o espelho e a vergonha
- lumannrich
- 18 de out. de 2024
- 8 min de leitura
Atualizado: 30 de nov. de 2024

É muito comum que os textos a respeito do envelhecimento comecem com estatísticas que mostram o aumento significativo do número de idosos nas próximas décadas. Idoso é uma nomenclatura que, no Brasil, abarca pessoas com mais de 60 anos e que deixou de ser representada pelo símbolo da pessoa curvada com uma bengala. A substituição desta por uma pessoa em pé acompanhada do 60+ é fruto da conscientização contra o etarismo, problema que ganha cada vez mais destaque. Em 2016, a Organização Mundial da Saúde alertou que o comportamento preconceituoso contra idosos pode afetá-los física e mentalmente.
Etarismo é o termo que se usa para denominar comportamentos discriminatórios e intolerantes contra pessoas identificadas como velhas. Sim, deixemos de lado o termo idoso, denominação criada a partir de critérios políticos e econômicos que busca eliminar o estigma contido na palavra velho. Sabemos que não basta mudar o nome. Ainda que o bonequinho representante dos 60+ tenha ficado ereto, perdura certa ideia de que a pessoa envelhecida é frágil, caseira, cuida dos netos e já não participa ativamente do mundo.
O objetivo desse texto é mostrar que há um momento de crise quando alguém se depara com sua própria velhice e que essa crise é motivada pelo desencontro da imagem de si com o que se apresenta no espelho. Gostaria de pensar que o espelho pode ser também o olhar desvalorizador do outro, as capas de revista, a pressão estética para se manter sempre jovem. Pode ser ainda a cidade, que se deforma sob o peso da especulação imobiliária e já não devolve uma imagem na qual seus moradores possam se reconhecer. O sujeito se desorganiza psiquicamente porque perde as bases de sustentação que o tornavam valoroso e davam sentido à sua vida e se enche de vergonha por sentir que já não tem lugar.
O envelhecimento é um processo que nos acompanha por toda a vida. Envelhecemos desde que nascemos e perdemos dentes de leite, virgindade e massa muscular nesse processo. Vamos nos adequando às mudanças impostas pela passagem do tempo, aceitando com mais ou menos facilidade as marcas que deixa em nossa aparência e as limitações que impõe a nossos movimentos. Entretanto, há um momento em que algo se apresenta de maneira mais contundente: pode ser uma doença, a perda de uma pessoa amada, um fracasso no trabalho. Esse acontecimento transforma os sinais do envelhecimento, cabelos brancos ou rugas, na flecha que atravessa o espelho e faz ruir a imagem de si.
Trata-se de um descompasso, uma crise na qual o sujeito vê refletida uma imagem que não reconhece como sua. Espelho que de repente devolve um assombro: “a senhora veio para o grupo da terceira idade?”. Bum, está instalado o desassossego: a imagem refletida provoca uma inquietante estranheza justamente por não coincidir com o que o sujeito pensava de si.
Há uma fantasmática inconsciente própria do momento em que se percebe os primeiros sinais do envelhecimento, momento este de confronto entre o Eu ideal e a realidade corporal. Sabemos que a criança unifica seu corpo desmembrado a partir do corpo inteiro do outro. Se o bebê vem ao mundo sem organização corporal terá, entre 6 meses e 1 ano e meio, uma visão de sua totalidade através dos olhos de seus pais, seu
espelho. Essa imagem é um ideal de si mesmo que irá se confundir com a imagem e as fantasias de seus pais e formar o Ego ideal. Os investimentos amorosos darão coesão ao eu, sendo deixadas de lado as representações que remetem ao desamparo ou à angústia catastrófica de desmoronamento vivenciadas nas primeiras etapas da vida e que são ameaçadoras para essa sensação de inteireza.
Passados muitos anos, quando algo especialmente doloroso se abate sobre o sujeito, a imagem coesa de si se esfacela e vem à tona tudo aquilo que precisou ser deixado de lado para constituir o Eu ideal, bastião da onipotência narcísica, para quem a afronta das marcas do tempo é insuportável. Abatido, cai o Eu ideal e em seu lugar aparece seu negativo: o Eu horror, como efeito da dor produzida pelo desencaixe entre a imagem refletida e a fantasia sobre si mesmo.
Isso lança o sujeito numa crise a partir da qual cada mudança que modifique seu aspecto corporal e altere sua imagem será recebida com ansiedade. Surgem afetos como raiva, impotência, medo do futuro e dor pela juventude perdida. A tensão entre Eu ideal e seu negativo, Eu horror, aparece nos momentos em que falham os suportes subjetivos e sociais, tornando incerto e borrado o lugar ao qual sentia pertencer. Quando desaparece o olhar valorizador do outro, o contrato narcisista vacila e emerge aquilo que foi negativizado para fazer possível a constituição de um sujeito dentro de um grupo.
O Brasil é o país recordista em cirurgias plásticas. A figura que representa as pessoas mais velhas segue curvada nessa cultura que valoriza o corpo jovem, saudável e belo. Fazer todos os procedimentos estéticos disponíveis pode garantir ao sujeito que envelhece alguma sensação de valor. Entretanto, apesar de todos os esforços, as marcas do tempo insistem em se fazer presentes. O sujeito assiste impotente às mudanças na sua imagem, ainda que, psiquicamente, não sinta os efeitos do envelhecimento. A exigência
ao psiquismo será encontrar um lugar para essa estranha imagem, que golpeia rudemente os ideais narcísicos.
Quando os sinais do envelhecimento aparecem no corpo biológico, que em nossa sociedade costuma ficar velado, podem gerar um tipo bastante desorganizador de vergonha. Numa cultura etarista, portar as marcas do envelhecimento é fazer-se invisível e excluído. “Ao mesmo tempo que o outro sabe tudo dele, que não há qualquer domínio do oculto, ele não existe para o outro, não é olhado. O fundamental de si é tanto absolutamente visível, quanto negado”. (Carbone, 2021, p.198)
Pensemos nesse sujeito que não se sente velho, mas que envelheceu. Ele caminha pela cidade e espera para atravessar uma avenida. O farol de pedestres fica verde e ele se põe a caminhar, mas quando ainda está na metade do trajeto a luz vermelha começa a piscar. Se afoba, tenta correr mas se atrapalha, carros buzinam, motos avançam, chega ao outro lado. Esse fracasso vivido publicamente é como um primeiro ataque que o torna suscetível à vergonha. À medida que outras situações como essa acontecem, tem-se uma desestabilização que torna a pessoa menos apta a lidar com situações sociais difíceis. É com mais vergonha que irá reagir a situações de desajuste, e esse desajuste a fará sentir se ainda mais inadequada, sem lugar no mundo, oscilando entre a vergonha e o sentimento de exclusão social.
Vimos até aqui de que maneira a discordância entre a imagem que se tem de si e o que é refletido no espelho gera uma crise que abala os sustentáculos psíquicos com a instalação do Eu horror e que rompe a sensação de pertencimento a um grupo, com o sentimento de vergonha. Se uma das definições da vergonha é o medo da exclusão social, cabe pensarmos sobre o modo como o lugar em que se envelhece afeta as pessoas.
As grandes cidades brasileiras têm sofrido com a especulação imobiliária, que cria uma lógica perversa em que o lucro é mais importante do que a qualidade de vida. A cidade desfigurada é um espelho quebrado no qual é difícil se reconhecer. Como viver numa cidade e sentir-se parte dela se os aspectos que garantem a convivialidade são destruídos? Como encontrar referenciais numa cidade que muda a todo instante e não preserva a memória?
No filme Aquarius, o diretor recifense Kleber Mendonça Filho nos conta a história de Clara, que vive em frente à praia de Boa Viagem. Ela sobreviveu a um câncer de mama, ficou viúva, tem filhos e netos e vive sozinha nesse apartamento que pertenceu a uma tia querida. Acompanhamos Clara numa manhã qualquer: maiô, viseira e praia para praticar atividade física. O guarda vidas a conhece e chama o reforço por barco para que fique por perto enquanto ela entra no mar. Ela diz ao guarda vidas que isso é bobagem, mas ele diz que ela é muito importante.
Ela faz parte desse lugar, onde construiu vínculos e referências. O calçadão, a turma da ginástica na praia, o comércio, todas essas coisas dão a ela uma sensação de identidade:
O enraizamento num lugar, a possibilidade de aí retornar e a construção de um
tempo pessoal me parecem, em sua própria associação, essenciais à
constituição do sentimento de identidade. Uma base onde levantar andaimes,
um refúgio onde recolher consolo, uma morada onde viver, em surdina, os
passos lentos ou precipitados do tempo, uma casa onde instalar seu desgosto
do mundo, ou ao contrário, sua avidez admirativa. (Berry, 1991, p.216)
Clara está enraizada nesse lugar e usufrui com prazer das coisas que possui: discos de vinil, piano, sua casa, seu corpo, a praia em frente ao seu prédio. Mesmo quando uma construtora, interessada em derrubá-lo para construir um edifício alto e moderno, passa a assediá-la com o objetivo de comprar seu apartamento, único que ainda não foi vendido. Os meios para convencê-la passam por uma generosa oferta financeira que, recusada, tornam-se mais agressivos.
O lugar onde experimenta intimidade e pertencimento passa a ser atacado, gerando instabilidade. Seus filhos se preocupam com sua segurança e questionam a decisão de permanecer num prédio em que já não há um vizinho sequer. A filha menciona a oferta financeira recebida por ESSE apartamento, enfatizando o pouco valor que atribui a ele. Clara defende que esse apartamento é o lugar onde eles cresceram, onde viveu dias felizes com seu marido, onde estão as coisas preciosas de sua vida. Nesse apartamento vai ficar até morrer.
A formação do Ideal de eu implica num distanciamento em relação ao narcisismo primário. Esse distanciamento ocorre pelo deslocamento da libido para um ideal imposto desde fora, das exigências da lei, o que marca o caráter externo do Ideal de eu. Essa é a instância simbólica que capacita o eu a resistir aos embates do tempo, da imagem e dos mandatos sociais. A sensação de ter um lugar no mundo é garantida ao sujeito envelhecido através da satisfação que experimenta, das atividades que realiza e do reconhecimento daqueles importantes para si. Essas experiências enraizadoras impedem que o Eu horror tome conta de tudo, mergulhando o sujeito no desespero e na sensação de não ter mais um lugar no mundo. É também a sensação de pertencimento a um lugar que mantem afastado o risco de o sujeito se sentir excluído quando já não é tão jovial e belo.
Clara luta para continuar vivendo onde escolheu. Ao travar um embate com uma construtora rica e politicamente influente, escapa da sensação de enlouquecimento gerada pela situação, que além de tudo a faz sentir inadequada, graças à plasticidade psíquica que possibilita a atualização dos ideais, abrindo caminho para a continuidade dos projetos de vida e o uso do corpo como fonte de prazer.
A imagem de velhice ameaçadora e desvalorizada projetada pela cultura que, através de comportamentos como o etarismo, produz sofrimento físico e mental aos velhos, faz com que o “ideal de ego que envelhece adquira um aspecto de bicho papão do ego” (Messy, 1999, p.25). Será nosso título de país recordista em cirurgias plásticas resultado do pavor de ver marcada no corpo a passagem do tempo?
A velhice não tem nada a ver com uma idade cronológica. É um estado de
espírito. Existem velhos de vinte anos, jovens de noventa. É uma questão de
generosidade de sentimentos, mas também de uma maneira de guardar em si
uma certa dose de cumplicidade com a criança que se foi. (Mannoni, 1995, p.16)
Referências bibliográficas
AQUARIUS. Direção de Kleber Mendonça Filho. Recife, Globo Filmes, 2016 BERRY, N. O sentimento de identidade. São Paulo: Escuta, 1991
CARBONE, LMJ. Vergonha: um estudo psicanalítico. São Paulo, 2021. 226f. Dissertação (Mestrado – Programa de Pós Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2021.
Dicionário de psicoanálisis de las configuraciones vinculares. Pachuk, C, Friedler, R, org. Buenos Aires: Del Candil, 1998
MANNONNI, M. O nomeável e o inominável. A última palavra da vida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1995.
MESSY, J. (1999). A pessoa idosa não existe: uma abordagem psicanalítica da velhice. São Paulo, SP: Aleph.
SINGER, D. O corpo na velhice: usos, abusos, desusos do soma à fantasia. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/1394/139420850006.pdf
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