Território como fratura e pertencimento
- lumannrich
- 18 de out. de 2024
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Atualizado: 4 de fev.
Para além de tudo que nos molda, o chão por onde caminhamos deixa marcas em nós. Ao envelhecermos, perdermos de certa maneira a familiaridade com nosso corpo e nosso ritmo porque inauguram-se novas feições e temporalidades. Isso pode suscitar uma crise, o que muitas vezes justifica a entrada de um acompanhante terapêutico[1]. Faz parte do trabalho do at estar no território da pessoa acompanhada. Nessa clínica arriscada, em que não podemos contar com a previsibilidade do setting tradicional, estamos lançados ao desconhecido junto àquele que acompanhamos. Para não nos perdermos, mapeamos o que já percorremos para saber a que lugares é seguro voltar e para onde nunca retornar, seja um tema de conversa ou uma padaria. Mapeamos o território pelo qual caminhamos, seja ele existencial ou físico para criar pontos de referência, um porto seguro.
Talvez fosse desejável, para nós e aqueles que acompanhamos, contar com uma certa constância no entorno, uma cidade que se mantivesse parecida com o que foi e nos ajudasse a encontrar caminhos apesar de tanto estranhamento. Não é o que acontece em São Paulo e outras metrópoles, rearranjadas a cada instante pelo capital especulativo e economia globalizada. Como é envelhecer numa cidade imensa, em que as mudanças em sua feição apagam a memória e tornam difícil encontrar antigos pontos de referência? Para pensar criticamente sobre essa questão, vamos usar o conceito de território desenvolvido pelo geógrafo Milton Santos a partir das ideias de verticalidade e horizontalidade.
As verticalidades são o conjunto de pontos que forma um espaço de fluxos. Um exemplo são as grandes empresas subordinadas a uma temporalidade globalizada que, ao instalarem-se em determinado lugar, impõe um ritmo e uma lógica estranhos a ele. “As verticalidades são, pois, portadoras de uma ordem implacável, cuja convocação incessante a segui-la representa um convite ao estranhamento. Assim, quanto mais modernizados e penetrados por essa lógica, mais os espaços respectivos se tornam alienados.” (Santos, 2006, p. 108)
No mundo globalizado, o dinheiro circula livremente, interfere de maneira contundente na política e orienta decisões que deveriam ser pautadas pelo bem comum. Um exemplo gritante disso é o mercado imobiliário e a força que tem junto aos políticos ao financiar suas campanhas. Outro exemplo são as grandes empresas que, ao se instalarem num pedaço de chão, obrigam que tudo ao seu redor se adapte à sua lógica, “mesmo que provoque, no entorno preexistente, grandes distorções, inclusive a quebra da solidariedade social”. (Santos, 2006, p.85)
As horizontalidades são definidas por Milton Santos como zonas de contiguidade que formam extensões contínuas. Elas comportam os pontos, as redes e interconexões que caracterizam as verticalidades, mas também as demais parcelas do território, que podem ser chamadas de espaço banal. O espaço banal é de todos: empresas, instituições, pessoas. É o espaço das vivências, em que a existência das pessoas molda o território, a partir do qual se cria uma solidariedade orgânica.
“As horizontalidades, pois, além das racionalidades típicas das verticalidades que as atravessam, admitem a presença de outras racionalidades (chamadas de irracionalidades pelos que desejariam ver como única a racionalidade hegemônica). Na verdade, são contra-racionalidades, isto é, formas de convivência e de regulação criadas a partir do próprio território e que se mantêm nesse território a despeito da vontade de unificação e homogeneização, características da racionalidade hegemônica típica das verticalidades.” (Santos, 2006, 110, grifo meu)
Utilizando os conceitos acima apresentados podemos pensar que o território está radicalmente presente na experiência do AT. O território é o que o acompanhado nos apresenta a partir de seus pontos de referência e o que captamos dele através dos sinais que emite. Vejamos essa imagem abaixo:

(foto tirada pela autora em Porto Alegre – Bairro Moinhos de vento)
Nela há dois casarões antigos cercados por um tapume em que se lê: “Breve aqui um projeto preservando a história do Moinho”. Ao redor, muitas casas antigas já foram ao chão para que o processo de verticalização do bairro siga seu curso. Que a construtora considere a manutenção de duas casas como um ato de preservar a memória, enquanto desfigura o bairro, derrubando tudo o que havia de marcas, diz muito das verticalidades presentes no território.
“Os projetos urbanísticos contemporâneos falam constantemente em ‘revitalização’, como se estes fossem lugares mortos, precisando de uma nova vida. Pretendo mostrar justamente o contrário, que são lugares de grande vitalidade, povoados de mistério, de lembranças e espíritos, de lendas criadas por seus habitantes. É o que aparece nas situações, não apenas a sensualidade, os gestos, as falas, mas universos repletos de personagens de todo tipo, entidades, deuses, maldições, investimentos em lugares ou fontes, um povoamento do mundo que vai na contramão da suposta sombra que a ‘revitalização’ pretenderia sanar” (Pelbart, Peter Pál. Ensaios do assombro, 226). Só podemos enxergar os vaga-lumes na escuridão. O excesso de luz os faz invisíveis. Assim é com as brechas da cidade e seus recônditos que tornam possíveis as existências outras.
Essa lógica do capital silencia as subjetividades ao apagar as marcas e as histórias. Eclea Bosi dirá que as lembranças se apóiam nas pedras da cidade. Se é assim, aonde seguir apoiando as lembranças se as pedras não estão no mesmo lugar? A rápida transformação do território contribui muito para a sensação de não mais fazer parte do mundo e suas relações, tão presente em processos de envelhecimento marcados pela tristeza e reclusão. “Por isso dizemos que os muros não marcam apenas territórios geográficos, eles desenham uma geografia identitária ao pensamento, às práticas profissionais e aos modos de estar na cidade.” (Adura, p. 24)
A clínica do AT tem como uma de suas marcas considerar a cidade em sua dimensão produtora de relações “oposta à cidade-mercado, onde a privatização do espaço público, impondo uniformidade e ordem, faz do outro objeto de evitação, silenciamento e violência” (Palombini, p. 136). O acompanhante ajuda o acompanhado a procurar as pedras que sobraram para que possa sustentar algo de sua história. Ao refletir em seu fazer sobre a maneira como a subjetividade das pessoas é afetada pelo território, o acompanhante se pergunta a respeito das brechas que se pode encontrar.
Há sempre uma brecha

(Fotografia de Karime Xavier)
Os errantes modernos perambularam pela metrópole a recusar o controle total dos planos urbanísticos modernos. Paola Berenstein Jacques se refere assim aos artistas, escritores e pensadores que, com suas andanças, questionaram de forma crítica a construção dos espaços. O simples ato de caminhar pelo espaço público podia se tornar uma crítica. Perder-se de propósito, andar sem rumo para apreender um outro território. Errância como maneira de politizar o corpo e reconquistar a cidade numa ação intencional.
Para o filósofo Giorgio Agamben, profanar tem o sentido de restituir ao uso comum o que foi sequestrado pela moral. Podemos pensar que os errantes profanam a cidade, restituindo a cidade (que havia sido sequestrada pela lógica do capital) ao uso comum. Flavio de Carvalho, nascido em São Paulo em 1899, filho de família tradicional, engenheiro e arquiteto, retornou da Europa quando explodia no Brasil o movimento modernista. São Paulo era uma cidade provinciana e conservadora que ele profanou usando o próprio corpo como suporte de sua arte. Em uma de suas experiências, passeou pelas ruas da cidade trajando uma blusa plissada, um saiote com pregas e um chapéu transparente, o que anunciou como Lançamento do traje de verão de 1956 (REZENDE, 2016).
Helio Oiticica, outro artista errante, falava em “poetizar o urbano”, chamando a atenção para esse aspecto que ficou esquecido pelos urbanistas tão preocupados com a funcionalidade da cidade. Walter Benjamin se encantou pelo flanêur, esse poeta urbano que, na Paris do fim do século XIX, resistia às imensas mudanças no traçado da cidade. “Benjamin buscou construir uma teoria crítica sobre a modernidade e a racionalidade burguesa. Escolheu o flâneur como o personagem síntese da crítica à modernidade porque, não podendo escapar a ela, o flâneur encontrava maneiras de burlar a velocidade, de imprimir outra relação com a cidade: encontrava brechas que inauguravam usos inusitados do espaço.” (Mannrich, p. 52)

(Fotografia de Karime Xavier)
O at ocupa um importante lugar de intermediário entre o paciente e o mundo. Nunca está dentro ou fora, habita sempre um litoral, a margem. Desde esse lugar difícil me parece haver duas questões fundamentais. A primeira tem a ver com a possibilidade de usufruirmos do que é visto e vivido por quem acompanhamos. Ato de acompanhar terapeuticamente que pode se transformar em abertura de experiência de vida, em possibilidade de ver com outros olhos o mesmo de sempre. “Como resgatar essa dimensão estética de um olhar louco sobre a pólis, portanto olhar político, sem perder de vista o que está em jogo, do ponto de vista clínico, no acompanhamento? (Pelbart, p.54)
A segunda questão diz respeito ao tempo da cidade e ao tempo do acompanhado que muitas vezes não se deixa guiar, imprimindo sua lógica e seu ritmo. Como acompanhantes, podemos acompanhar esse ritmo, usufruir dele? Somos capazes de afinar nosso corpo a partir do corpo de quem acompanhamos e, nesse caso, perceber as coisas desde esse tempo singular?
Alguma coisa está fora da ordem
Vimos acima que as verticalidades agem sobre o território homogeneizando os discursos, o tempo, a velocidade. Os que não conseguem se adequar a esse ritmo, seja porque são velhos, loucos ou errantes, ficam de fora, habitando um lugar de exclusão. Se os loucos eram confinados a hospitais psiquiátricos, silenciados e desumanizados, hoje, com sorte, são alocados em algum CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) onde podem passar o dia para que seja estimulada sua reinserção social. “Com isso, esses grevistas desordenados e frustres contra uma ordem produtiva acelerada passaram a ser reconduzidos, bem ou mal, e segundo suas possibilidades canhestras, ao ritmo societal” (Pelbart, p. 53). Também os velhos são “convidados” a uma adequação, travestida de melhor idade, velhice saudável, ageless.
Judith é uma grevista que caminha pelas ruas da cidade de São Paulo há muitas décadas. Já foi vendedora de livros, corretora, aluna de fotografia. Foi internada no auge de uma crise e há muitos anos conta com acompanhantes terapêuticos que tentam caminhar ao seu lado. Vive no mesmo prédio há 25 anos, na região central da cidade de São Paulo. Outrora degradado, o lugar passou por uma grande revitalização que vem redesenhando o entorno conforme este se valoriza economicamente. Comumente, o processo de valorização de um espaço gera como consequência um outro processo, chamado gentrificação: com a elevação dos preços decorrente da valorização do lugar, há uma expulsão dos moradores antigos que já não podem arcar com as despesas.
Judith percebe esse movimento há muito tempo. Ela capta os sinais que já estão ali, gerados pela lenta transformação da rua, comércio, vizinhos. Isso chega para ela como parte de seu delírio de perseguição, gerando muita angústia e medo de morrer. O apagamento das marcas que usava para se mover pelo território tornam seu deslocamento mais penoso e persecutório.
Judith conta com os at’s para alguns detalhes de sua vida, frustrando certa ânsia que permanece em nós de uma inserção que nunca se completa exatamente. Ela resiste, nos frustra, obrigando-nos, seus at’s, a um movimento contínuo de compreensão de sua “insubordinação”. Não tem dentes, usa calças apertadas demais e baixas demais com coletes cheios de broches e duas ou três bolsas a tira colo. Costuma cortar seus cabelos brancos em casa, o que invariavelmente a deixa com a aparência de algum egresso de hospital psiquiátrico ou campo de concentração. As relações que estabelece com os vizinhos, porteiros, vendedores e feirantes são afetivas e agressivas ao mesmo tempo, cheias de carinho e cobrança, curiosas de assistir porque é impossível prever o desfecho. Ela costuma conseguir o que quer e é bem recebida ao voltar, o que é surpreendente. Nunca nos deixa interferir nessas relações, nos olha com pena por perceber o quão pouco entendemos.
Judith sente que perde seu território quando o novo vizinho a trata com hostilidade ou quando as melhorias executadas em seu prédio por uma empresa anônima e distante deixam seu corredor sem luz temporariamente. Se antes as coisas eram próximas e bastava um chamado para acessar alguém, hoje tudo está indecifrável. A família hostil, que a persegue há mais de 30 anos em seu delírio, se materializa nesse entorno estranho e a desorganiza.
Como at’s, precisamos ouvir seu delírio ao mesmo tempo em que a ajudamos a compreender o espaço que se modifica ao redor. Como se tentássemos identificar em seu discurso brechas de realidade na qual possamos ajudá-la a se inserir. A certeza de que o corredor sem luz é um ataque de seu irmão precisa ser acolhida ao mesmo tempo em que tentamos fazer algo a respeito, buscando reforçar que ela é moradora do prédio e não pode ser expulsa. Às vezes o medo é tão grande que precisamos recorrer a um representante do mundo burocrático, como um advogado ou administrador do edifício, para que assegure a ela que está tudo bem e que ela ainda pode morar ali. Nesse movimento podemos, com sorte, ajudar a restaurar um tanto do seu território, criando redes de solidariedade e de afeto capazes de reassegurar um lugar de pertencimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADURA, Beatriz; Knijnik, Cristiane. A ética da diferença ou simplesmente algumas histórias antimanicomiais. In Além dos muros. Acompanhamento Terapêutico como política de saúde mental e direitos humanos. Rede Unida. Porto Alegre, 2017.
JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Breve histórico das errâncias urbanas. ArquiTexto 5, 2004. Disponível em:
MANNRICH, Luciana Goulart. Reinventar a cidade ou adequar-se a ela? Um estudo sobre a percepção da cidade de São Paulo a partir da região central. Trabalho de conclusão da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2006
PALOMBINI, Analice de Lima. Vertigens de uma psicanálise a céu aberto: a cidade. Contribuições do acompanhamento terapêutico à clínica da reforma psiquiátrica. Tese de doutorado. UERJ, 2007. Disponível em:
PELBART, Peter Pál. A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro, Imago, 1993.
REZENDE, Renato. Flávio de Carvalho – ações corpóreas e ambientais e ativadoras de sujeitos (ou esboços de um Brasil moderno ao contemporâneo). Revista Diálogos en Mercosur. Número 1 – enero/junio 2016. Disponível em:
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de janeiro, Record, 2006.
VIEGAS, Francisco José. Regresso por um rio. Imaginações para uma novela. Portugal, Publicações Europa – América, 1987.
XAVIER, Karime. Repórter fotográfica registra o surreal da pandemia em SP
[1] Na seqüência, utilizaremos a abreviação AT para acompanhamento terapêutico e at para acompanhante terapêutico.
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